quarta-feira, janeiro 30

Silêncio de um minuto



Tinha trejeitos nas frases de quem ouvia Maria Bethania e cheirava a gel de banho comprado em comércios fronteiriços. É divorciada, diziam as outras mulheres do prédio, todas muito iguais, todas as cheirar a sabonete. Na pastelaria do bairro, onde essas outras mulheres compravam ducheses e outros bolos excessivos, ela pedia sempre o mesmo, uma italiana e uma fatia de tarte de amêndoa. Para embrulhar. O rapaz do balcão, que deixara crescer o bigode para parecer mais velho, fazia-lhe um embrulho no papel com logótipos azuis e vermelhos e punha-o em cima do balcão. Ela acendia o cigarro com as mãos em concha e sorria-lhe com os olhos sem rímel. Na minha terra chama-se picado de abelha, dizia ele. O sorriso dela escorria-lhe até aos lábios. Deitava a cinza na beira do pires e tirava com a outra mão as moedas para pagar. Deixava a mão esquecida em cima do balcão e ele pousava a dele por cima. Acho que punham mel no caramelo. O sorriso dela cobria-lhe o corpo todo, desviava o rosto para expelir o fumo e depois de fazerem um silêncio de um minuto,  dizia sem o olhar, a chave continua debaixo do tapete.

Tarte de amêndoa



Massa:
100g de açúcar
100g de manteiga sem sal
225 g de farinha
1 ovo inteiro
3 colheres de sopa de leite
Pitada de sal fino

Caramelo
150 g de amêndoa laminada
100g açúcar
100g  manteiga
3 colheres de sopa de leite

Bata o açúcar com a manteiga até ficar bem cremoso. Junte o ovo e o leite. Bata. Envolva a farinha e o sal. Leve a forno pré-aquecido a 200º durante 10 minutos. Entretanto faça o caramelo. Leve o açúcar, a manteiga e amêndoa ao lume, até caramelizar. Retire do lume e junte o leite. Deite por cima da massa e leve ao forno por mais 10 minutos.

Receita adaptada de Sabores de Canela

sexta-feira, janeiro 25

Hermínia



Sempre que imaginava as coisas mais do que três vezes, elas aconteciam.  Acontecera com o vizinho, que fora encontrado morto  na cama, de rosto retorcido. Pela dor, disse quem o encontrou. Tal e qual como ela o imaginara de todas as vezes  que ele, viscoso,  lhe respirara para cima do decote.  Três vezes. Acontecera com o irmão, que vira com um fio de sangue correndo pela boca antes de partir na mota. Três vezes. Soube que ia ter  uma filha de cabelos de cor de fogo dois dias antes da noite em que foi concebida contra o muro coberto com maracujazeiro .  Três vezes. Com medo, deixou de pensar, passou a escrevê-los. Uma vez apenas, na sua letra miudinha,   em cartões amarelados, que depois guardava numa caixa de madeira perfumada, escondida num canto do guarda-fatos. Quando começou a perder a memória escreveu primeiro Domingo de Junho depois do sino da tarde. Pediu à filha, que nunca casara, até porque ela nunca lhe vira o noivo pela terceira vez, que todos Domingos de Junho a sentasse à janela. No terceiro Domingo depois de já não se lembrar, contou as badaladas do sino, uma, chamou a filha, duas, chegou a hora, três, o teu noivo vai dobrar a curva da estrada, quatro, leva os narcisos brancos que vão despontar atrás do tanque, cinco, os olhos vidrados sorriram, seis, um homem de camisa branca dobrou a curva da estrada e  parou junto ao muro do maracujazeiro, sete, ela antes do ultimo suspiro, disse, chegou a minha hora.


Suspiros de coco com curd de maracujá



3 claras
80g de açúcar granulado
80g de açúcar em pó
200g coco ralado

Bata as claras em castelo. Junte os açúcares e bata até obter um merengue bem firme .Envolva o coco na massa de merengue, Deite colheradas de massa num tabuleiro forrado com papel vegetal, faça com as costas de uma colher de chá uma concavidade no centro de cada montinho e leve a forno pré-aquecido a 120º durante cerca de 40 minutos.
Depois de frios, recheie a convavidade com curd de maracujá

terça-feira, janeiro 22

Vocês sabem lá



Arrendara os três quartos ao fundo do corredor a professoras. Só mulheres, que não quero cá homens em casa, para isso bastou-me o falecido. Ela ficara com salinha pegada com a cozinha, onde tinha  um velho gira-discos que já  só funcionava a 42 rotações, mas não fazia mal,  que ela só tinha discos dos pequenos. Tinha também uma  televisão em cima de uma camilha coberta com uma tolha de renda que trouxera no enxoval, já não se fazem peças assim. A salinha tinha uma janela de guilhotina que dava para o parque, que ela abria para pôr as mantas a arejar, enquanto ouvia o disco da Maria Fátima Bravo.  Saía às sextas para ir arranjar o cabelo arroxeado e armado com laca ao cabeleiro que ficava do outro lado do mercado. Pode-me trazer maracujás,  meio quilo é suficiente, por favor? Pedia uma das doutoras que nascera  numa das ilhas dos Açores, a maior, que ela só se lembrava que tinha nome de Santo, malvada da memória que a traía a uma velocidade diferente do presente.  Ela trazia-lhe um saquinho de plástico de asas, mas isto são maracujás a mais, dizia a doutora carregando no u, e  ela, com a mão trémula punha a agulha do gira discos a custos, é um quilo bem pesado e aos primeiros versos cruzava as mãos no ventre e dizia, esta rapariga cantava muito bem.

Curd de maracujá



1 lata de polpa de maracujá
4 gemas
2 ovos inteiros
80g de manteiga
175g de açúcar

Bata as gemas e os ovos inteiros com o açúcar. Junte a polpa de maracujá coada, sem sementes. Leve a lume muito brando juntamente com a manteiga cortada em pedacinhos e deixe engrossar sem levantar fervura. Deite em frascos esterilizados.

Adaptado de  Passionfruit curd de Nigella Lawson

sexta-feira, janeiro 18

Uma estória de amor



Ele era sindicalista e arrastava ligeiramente uma perna. Ela tinha um decote generoso e ouvia sempre a mesma cassete de música francesa.  Foi na Guiné, dizia quando ela lhe punha a bica em cima do balcão. Ele contava-lhe de novo a estória da emboscada e ela suspirando cortava-lhe uma fatia de bolo mármore mais generosa do que a dos outros clientes.  Um dia, ele pegou-lhe na mão e olhando-lhe os peitos, disse, és bonita. Ela baixou o rosto de olhos minúsculos e sobrancelhas excessivamente espessas e  respondeu corando, obrigada. Nessa tarde, na pensão Luanda, de águas correntes, depois de desapertar os colchetes, ela cruzou os braços sobre o peito e  disse, tenho uma coisa para te contar, por dentro do soutien ponho algodão em rama. Ele, dobrou cuidadosamente as calças e disse, não faz mal, nunca estive na Guiné, foi a poliomielite que me deixou assim.


Bolo mármore de café

225g de farinha com fermento
150g de manteiga sem sal
200g de açúcar
5 ovos
10g de café solúvel
1 colher de sopa de água quente
1 colher de chá de essência de baunilha

Bata a manteiga amolecida com o açúcar até obter uma mistura homogénea. Junte os ovos inteiros um a um, batendo bem entre eles. Junte a baunilha e depois envolva a farinha. Dissolva o café na colher de sopa de água. Divida a massa em duas porções e numa delas misture o creme de café. Leve a forno pré-aquecido a 180º durante cerca de 30 minutos, numa forma forrada com papel vegetal.

segunda-feira, janeiro 14

Indolência

Quando as palavras não chegam a tempo de formar uma estória, aglutinam-se com  languidez dos dias. Quando as palavras não chegam a tempo de formar uma estória, os rostos que antes eram  apenas letras escoam-se do papel. Os dedos espreguiçam-se na semântica até à manhã seguinte que pode ter acontecido antes deste texto.


Bolo fácil de sorvete de tangerina e torta de chocolate



1 litro de sorvete de tangerina
1 a 2 tortas de chocolate

Forre uma tigela com película aderente. Corte fatias de 1 cm de torta e forre a tigela com ela. Preenchas os espaços mais pequenos com pedaços de torna. Deite o sorvete, que deverá estar amolecido e leve ao congelador por umas horas. Para desenformar, puxe a película aderente.

Receita adaptada de Lorraine Pascale ( Swiss roll bowl cake)

terça-feira, janeiro 8

Marquês



Senta-se num lugar que lhe parece um canto, num corredor de rostos sem geometria. Pousa, a mala sobre os joelhos, o cotovelo sobre o parapeito de metal encardido e os olhos na revista que não lê. Do outro lado parede, a cidade amanhece. Uma mulher de cabelo mal pintado, senta-se ao seu lado. Na sua frente um homem por de trás de um jornal e um velho. Entrecampos. Uma mulher entra com uma criança. O homem do jornal levanta-se e dá-lhe o lugar. A criança no seu colo, a mulher sem rosto de olhos postos onde não os vejam. Há um rapaz que lê em pé. A mulher do cabelo mal pintado tosse, o velho pigarreia, a criança diz qualquer coisa. Cala-te. Silêncio, Campo Pequeno.  A criança olha para as pinturas na parede da estação, o velho pigarreia de novo e a mulher de cabelo mal pintado debruça-se sobre a sua revista. Cheira a tabaco, o rosto demasiado próximo do seu ombro, o chiar da respiração. A criança fala de novo, os olhos pardos da mãe não ouvem. Cala-te. Saldanha. O pai também fumava SG Ventil.  O rosto quase a tocar no braço, o velho levanta-se a custo, talvez só saia no Marquês, mas o velhos têm medo da própria lentidão. Cala-te, já disse. SG Ventil, e a aspereza do cabelo quase que a toca. Faz um gesto para se levantar, depois das Picoas. A mulher toca-a no braço. Posso levar essa página? Tem os olhos sujos do rímel ordinário e a voz embaçada pelo tabaco. Posso? A das receitas. Diz que o meu genro gosta de tiramissu.


Tiramissu



500g de mascarpone
5 ovos
5 colheres de sopa de açúcar granulado
5 colheres de sopa de açúcar em pó
5 colheres de sopa de vinho do porto
200ml de café expresso
350-400g de palitos de la reine
Cacau em pó q.b
1 vagem de baunilha

Leve as gemas, o açúcar granulado e o vinho do porto ao lume, em banho maria, e bata até obter um creme espumoso com o dobro do volume. Reserve. Bata as claras em suspiro com o açucar em pó. Reserve. Bata o mascarpone e as sementes raspadas da vagem de baunilha. Misture os 3 preparados. Num prato fundo deite o café expresso, embeba uma camada de palitos e disponha-os num prato fundo. Cubra com creme. Faça este procedimento até terminar com creme. Leve ao frio por umas horas. Antes de servir polvilhe com cacau em pó.



domingo, janeiro 6

Amparo


Às quartas feiras fazia canja. Com a galinha desfiada, arroz de forno. Depois sentava-se no topo da mesa da cozinha comendo a custo o caldo cheio de miudezas, cuja gordura lhe causava náuseas. Mas quarta sempre fora dia de canja, e deitar duas conchas no prato de lugar vazio, ao seu lado, reconfortava-lhe os silêncios que cresciam na casa.  Naquela quarta feira serviu a canja no dois pratos, no dela e no vazio. Duas conchas. Também lhe separara a camisa e a roupa interior de manhã. Impecavelmente dobradas sobre a cama.  Ligou a televisão, que só apanhava dois canais, para ouvir o  noticiário. Deixou o  seu prato, meio cheio,  no lava louça, parou um instante com a mão pousada nas costas da cadeira vazia, e disse, hoje não fiz as fatias douradas. Não havia ovos na mercearia.


Fatias douradas com doce de laranja amarga e chocolate



8 fatias de brioche
4 colheres de sopa de doce de laranja amarga
100g de chocolate de leite
2 gemas
150 ml de leite
Manteiga q.d

Bata as gemas com o leite. Passe as fatias de brioche por esta mistura, tendo o cuidado para não deixar ensopar excessivamente. Barre quatro das fatias com o doce de laranja, ligeiramente amornado. Por cima rale chocolate de leite e cubra com as outras quatro fatias. Numa frigideira deite um pouco de  manteiga e leve as sanduiches a dourar de um lado e do outro. Polvilhe com açúcar em pó.


quinta-feira, janeiro 3

Noite de Reis


Vivia no primeiro andar esquerdo de um prédio sem elevador. Talvez por isso saísse pouco à rua,  as dores nas pernas e noutros ossos que não os da alma enchiam-lhe os passos.  Sentava-se à janela da sala, apanhando o sol da manhã, com  um livro nos joelhos e uma taça de espumante ordinário.  Talvez lesse, talvez apenas juntasse as letras só para entreter os olhos. Talvez lembrasse de cor, de olhos e tempo fechados as falas de um tempo de palco. Pousava-os no vidro que reflectia uma imagem que não reconhecia dela e deixava que os lábios cheios de baton entre as rugas soprassem as letras das falas.  Vivia no primeiro andar esquerdo de um prédio que dava para um jardim habitado por crianças ruidosas e velhos que esperavam as horas. Na quinta noite do ano,  vestia-se a rigor de plumas e lantejoulas já sem brilho. Deitava mais espumante ordinário na taça que acreditava ser de cristal e se lhe batessem à porta, por peso na consciência de um ano inteiro de solidão, colocava a voz que insistia tremer depois dos anos e dizia-lhes, hoje chamem-me Viola.


Gratinado de espumante e framboesas



Para 2-3 pessoas
3 gemas
3 colheres de sopa de açúcar
3 colheres de sopa de espumante doce
250g de framboesas

Leve as gemas, o açúcar e o espumante numa taça em banho maria, e bata com uma vara de arames até duplicarem de volume e ficar um creme leve. Deite as framboesas no fundo de recipientes individuais que possam ir ao forno e cubra-as com o creme. Leve a forno bem quente até dourarem por cima. Sirva ainda morno.

Receita adaptada de  Laura Calder, French Food at Home.