sábado, agosto 31

Regresso

Regressávamos sempre, mesmo quando partíamos cedo para lá chegar antes do almoço. Da janela do carro via as árvores que corriam atrás de nós, pingando o fim de tarde nas folhas, porque o regresso, nas memórias, se faz sempre ao fim da tarde. E no silêncio interrompido por aquela amargura sem palavras, a que chamavam saudade de lá, aprendi a não perguntar muita coisa porque o que não se sabe também não se esquece.

segunda-feira, agosto 19

Maresia

Há dias que são apenas manhãs. Há manhãs onde correm todos os anos dos pretéritos. Há sempre uma neblina que cheira a mar e um café quente por entre as mãos unidimensionais do presente. E um tempo que somos nós de olhos postos numa janela.

sexta-feira, agosto 2

Olhos nas pontas dos dedos




Ninguém se lembrava realmente como ela era. Nem da idade, nem do nome, pois uns chamavam-lhe Maria, Mariazinha, outros Zé, apenas, mas nunca o verdadeiro, o de baptismo, Maria José. O rosto esbatia-se nos traços das caras dos outros. Ninguém se lembrava de parecenças maternas ou paternas, se era feia ou bonita. Saiu de cá há tanto tempo, diziam. E por isso falavam, como falavam de tudo o que lhes causava estranheza, como a queda de um raio no telhado da igreja, ou a chegada de um estrangeiro à terra. Falavam do que não se recordavam dela, pois só Cecília se lembrava, não por ser a mais velha dos irmãos, mas por ver com os olhos de dentro, que os dela não tinham nem cor, nem memória. E era ela, quem todas as primeiras sextas-feiras do mês esperava o toque da campainha do carteiro, que chegava numa bicicleta velha de correias a chiarem. Tens mais uma carta para ti, Cecília. Das do estrangeiro, vê-se pelo selo. Ela sorria-lhe à voz, agradecia e ficava no alpendre até o chiar das correias esmorecer na curva da terra batida. Depois, com as pontas dos dedos raspando as paredes das escadas, subia até ao quarto mais alto, e ali ficava de envelope entre as mãos. Não precisava de o abrir para saber o que dizia, dentro daquele quadrado de papel moravam os seus olhos para o mundo. Vinham saudades do tempo em que ainda eram pequenas. Diz-me que cara fez aquela mulher, pedia-lhe Cecília, quando brincavam na Praça. Maria José fazia-lhe uma careta e passava-lhe a ponta dos dedos pelo rosto, uma cara assim, e Cecília ria-se, são estranhas as caras dos outros. Antes de guardar a carta da gaveta de cima da cómoda, passava de novo com as pontas dos dedos sobre o envelope, e dizia, este ano que passou deixou-te mais uma ruga no rosto, Maria José.

( texto integrante da exposição, Bolota 1/4 adiante)

A Confeitaria vai de férias.  Reabre no voltar do mês. Até lá!