sexta-feira, setembro 30

Just breathe



Baixas os olhos sempre que te cruzas com o sem abrigo que dorme ao lado da porta do teu prédio. Finges que olhas os teus sapatos que imitam os de marca que não tens dinheiro para comprar. Mas não olhas, apesar de saberes que antes de atravessares a rua ele te vai dizer bom dia. Bom dia, menina. Parece velho porque a vida dele se escoa debaixo daquele telheiro ao dobro da velocidade da tua. Pensas que lhe podes dar a caixa de madeira com pêras que os primos, que desejarias afastados, te trouxeram da terra. E imaginas-te, enquanto olhas para a biqueira de fancaria dos teus sapatos, nesse gesto de generosidade tão artificial quanto a imagem que vestes ao espelho todos os dias. Bom dia, diz-te ele ao fim dos dois minutos de semáforo. O verde para os peões não cai e ele fica ali, dobrando as caixas de cartão. Tens uma amiga que distribui cafés e mantas pelo Natal a pessoas como ele.  Lembras-te de novo da caixa de peras. O dono do café da frente faz-lhe um sinal. Costuma dar-lhe o pequeno-almoço. O sinal verde cai e ele atravessa a rua atrás de ti. Colado à tua sombra. Que a esta hora da amanhã as sombras são mais longas e deformadas. Levantas o olhar para o ver entrar no café. Podias dar-lhe as pêras. Mas hoje tens um jantar com amigos que são apenas mais uma réplica daquilo que pensas ser. Talvez faças uns crepes, dizes para ti, antes de entrar para a estação de metro.

“And life’s like an  hourglass, glued to the table” *

* Anna Nalick





Crepes de pêra e vinho do porto





4 crepes bem finos 
4 pêras Williams ou Morettini
4 colheres de sopa de açúcar
2 colheres sopa de manteiga sem sal
50 ml de vinho do porto


Corte as peras em gomos finos e reserve (poderá adicionar umas gotas de limão para não escurecerem) Leve o açúcar e a manteiga ao lume numa frigideira até caramelizar ligeiramente. Retire do lume e junte o vinho do porto. Leve ao lume de novo até o caramelo ficar dourado escuro. Junte as peras e deixe cozinhar durante 1-2 minutos, consoante a espessura dos gomos. Recheie os crepes com este molho e dobre-os em leque.






quarta-feira, setembro 28

Natividade


Hoje está um belo dia para morrer, disse enquanto ajeitava cuidadosamente as pregas da saia. Ele sentado ao lado dela deu-lhe uma palmadinha na mão sorrindo. É capaz, é capaz. A mulher de quarenta anos repreende-a. Que conversa é essa, não diga isso, enquanto lhe deita o açúcar na chávena. Só uma colher. Do outro lado do muro passa lentamente uma camioneta carregada de uvas. Cheira a mosto, diz o homem velho. Digo, insiste a mulher velha enquanto tapa a chávena antes da segunda colher de açúcar. Hoje visitaram-me os meus filhos e já me telefonaram os netos. Todos menos o que está na Alemanha. Morria feliz. A mulher de quarenta anos parte-lhe uma fatia de bolo. A luz de Setembro dobra-se devagar na curva da estrada. O homem tira pacientemente as amêndoas da cobertura com a ponta do garfo. Não diga isso, que conversa, está um dia tão bonito. A mulher velha afasta delicadamente o prato do bolo, sorrindo. Estou em paz, por isso hoje seria um belo dia para morrer. O velho engole uma garfada de bolo. Cheira mesmo a mosto.





Bolo de licor de amêndoa amarga





Ingredientes:

200g de açúcar
150g de manteiga sem sal
5 ovos inteiros
125g de amêndoa moída
200 g de farinha sem fermento
1 colher de chá de fermento em pó
200g de alperces secos + 1 colher de sopa de farinha
60 ml de licor de amêndoa amarga
75g de amêndoa laminada

Para a cobertura
4 colheres de sopa de açúcar em pó
2 colheres de sopa de licor de amêndoa amarga

Toste ligeiramente as amêndoas laminadas numa frigideira e reserve. Bata o açúcar com a manteiga até ficar uma mistura bem cremosa e junte os ovos inteiros. Junte a amêndoa moída, o licor de amêndoa amarga e a canela e misture bem. Junte a farinha peneirada juntamente com o fermento e por fim os alperces previamente picados e envolvidos na colher de sopa de farinha. Envolva tudo cuidadosamente. Deite numa forma redonda, untada com manteiga e polvilhada com farinha e no fim polvilhe a massa com as amêndoas laminadas. Leva a forno previamente aquecido a 180º durante cerca de 40 minutos.
Faça a cobertura misturando o açúcar em pó com amêndoa amarga e verta por cima do bolo, depois de desenformado.

sexta-feira, setembro 23

Santo Amaro


Ficava sempre até ao fecho da biblioteca. Entrava devagar para que não ouvissem os seus passos sobre as velhas tábuas corridas. Sentava-se ao fundo, sempre na mesma mesa tentando diluir-se no cheiro a pó e na luz que entrava das janelas do primeiro andar. E lia, lia até que fosse o último a sair e serem horas de descer a rua até ao quarto que alugara perto da Rua da Junqueira. Não telefonas aos teus pais? Ele esquivava o olhar e respondia à senhoria, que andara na escola primária com mãe, não, hoje tenho de estudar.  Ela, atirando o pano da louça por cima do ombro, dizia. A tua mãe mandou-te mais estes pães-de-ló. Tenho de estudar, repetia, fugindo da náusea que o cheiro adocicado dos ovos lhe causava. Ficava sempre até ao fecho da biblioteca, na esperança de não voltar. Aos pomares de maceiras raquíticas do pai. Ao cheiro dos pães de ló cozidos de madrugada para vender aos turistas de São Martinho. Aos sábados, quando a biblioteca fechava mais cedo, esperava os fins de tarde no miradouro, com a capela por trás de si, apertando os livros contra o peito. E ficava ali de olhos escorrendo pela ponte que fugia para sul, onde começavam as terras das laranjas. Não ligas aos teus pais? Não. Talvez amanhã. Hoje tenho de estudar.



Pães de ló cremosos  





Ingredientes ( para aproximadamente 12)

10 gemas + 2 ovos inteiros
12 colheres de sopa de açúcar
5 colheres de sopa de farinha
1 colher de chá de fermento em pó


Pré aqueça o forno a 225º. Bata as gemas e os ovos inteiros com açúcar durante 10 minutos até obter um creme muito leve e espumoso. Junte a farinha peneirada e misturada com o fermento e envolva cuidadosamente.
Unte com manteiga e forre 12 ramequins, com papel vegetal. Deite o preparado em cada um dos ramequins e leve ao forno durante 4 minutos ( ou mal a parte de cima dos bolos fique dourada). Deixe arrefecer se desenforme-os.



segunda-feira, setembro 19

Bica cheia

O café onde parávamos ainda lá está, com as mesmas cadeiras verdes sobre a calçada preta e branca. Lembro-me que foste tu quem me explicou que havia calcário preto, partido à mão por homens da serra. Há dias em que ainda lá vou e ensaio cartas como esta. Cartas que não envio, porque já ninguém o faz. Sento-me e tiro o moleskine que fica sempre em branco, porque fica sempre tudo escrito no pensamento. Estás a escrever, dizias-me enquanto pedias o chocolatinho para acompanhar o café. E eu, de olhos perdidos em pequenos nadas, como os sapatos brilhantes do varredor de ruas ou os brincos da vendedora de flores, ria-me. O café onde parávamos ainda lá está. Encontrei a Mariana na caixa do supermercado. Perguntou-me se eu ia ao congresso na antiga FIL, que acho que se chama agora outra coisa. Comprámos lá uma tenda a meias, lembras-te? Para levar para um sudoeste que ainda era só Alentejo e sem festivais. Eu disse-lhe que não. Que me tinha desligado da área, que já não ia a congressos nem seminários. Perguntou por ti. Disse que tinhas ido para fora. Para tentares conquistar o mundo que pensávamos ter a nossos pés, tão perto como as luzes que víamos da roda gigante de Entrecampos. Que, tal  como o nosso futuro,que nos parecia tão óbvio e fácil, já não lá está.  Mas o café onde parávamos, esse ainda aqui está e hoje depois de pedir a minha bica cheia, abri o moleskine e escrevi estas linhas. Talvez te envie isto por email. Ou por uma mensagem no facebook, onde ponho likes nas tuas fotos tiradas do outro lado do oceano. Ou talvez me esqueça delas aqui, no café que também ficou parado deste lado.



Mousse de café e chocolate


Ingredientes
100g de chocolate negro (70% cacau)
4 ovos
150g de açúcar
1 colher de sopa de café instantâneo
1 colher de sopa de manteiga
1 colher de sopa de licor de café


Derreta o chocolate com a manteiga em banho Maria. Bata as gemas com o açúcar e o café até obter um creme leve e fofo. Junte o chocolate derretido ao preparado e leve de novo a banho Maria até dissolver os grânulos de café e obter um creme brilhante. Bata as claras em castelo  e envolva-as cuidadosamente no creme de chocolate e café (arrefecido)e junte o licor de café. Leve ao frio por umas horas e sirva com chantilly.

quarta-feira, setembro 14

Vinte e dois quilates

Apesar de ter as orelhas furadas, nunca usava brincos. Fora avó quem as furara com uma agulha, deixando duas argolinhas de linha branca. Assim a menina já pode usar as contas de ouro no baptismo, dissera enquanto queimava a ponta da agulha no bico do fogão. Nunca usava brincos, ainda que a avó lhe fosse dando aos pares de ouro, todos os aniversários. Ouro e virtude são os tesouros de uma mulher, dizia-lhe. Guardava-os na gaveta da mesa-de-cabeceira dentro de uma caixa de lata juntamente com as fotografias da avó pintadas de cor. Que tinha uma lata como aquela sempre cheia de bolachas de aveia. Uma receita que a vizinha emigrada na América lhe dera e para a qual todos os anos em Agosto lhe trazia caixas de flocos com rótulos escritos em estrangeiro. Nunca usava brincos e acreditava mesmo que os furos já tivessem fechado. O último par, herdara-o com a morte da avó. Um par de arrecadas de Viana. Ouro e virtude. Pagou o café e olhou para o letreiro verde do outro lado da rua. Antes de sair, a empregada do café trouxe-lhe à porta o saco de papel. Esqueceu-se disto na cadeira. Do outro lado a vitrina com a faixa verde. Suspirou e espertou na esquina que a rua ficasse vazia. Quando lhe entregou as notas de cem, tantas quanto precisava para a renda, o homem da loja da vitrina verde perguntou-lhe, olhando para as orelhas furadas vazias. Também não lhe fazem falta, pois não?


Bolachas de aveia




Ingredientes:

200g de manteiga sem sal
225g de farinha sem fermento
125 de açúcar mascavado
100g de flocos de aveia
1 colher de chá de baunilha
1 colher de café de sal fino

Bata a manteiga com o açúcar até obter um creme fofo e esbranquiçado. Junte os flocos de aveia, a farinha, o sal e a baunilha. Faça um rolo com a massa e envolva-o em película aderente e leve ao frigorífico durante pelo menos 1hora. Pré-aqueça o forno a 200ºc. Corte bolachas com cerca de 0,5 cm de espessura e leve ao forno até ficarem douradas.


segunda-feira, setembro 12

Chiquitita

A menina Natércia reconhecia todos os pacientes do doutor, ao telefone, pela voz, fazendo  questão de os tratar a todos pelo nome próprio e apelido.  A menina Natércia era uma funcionária de voz colocada e eficiente.  Tirava o som à televisão quando passavam os programas da tarde. Para quê ouvir tanta desgraça? Perguntava à magra assistência de reformados sentados em cadeiras encostadas à parede, enquanto emudecia as ligações em directo com mulheres vítimas de agressão e homens desempregados.  Ligava depois a pequena aparelhagem que tinha numa mesinha atrás do balcão onde punha a tocar os melhores êxitos dos Abba, os grandes ídolos da menina Natércia. Já lhe tinham dito, não se lembrava bem quem, que era muito parecida com a Agneta. Talvez fosse por isso que a menina Natércia ainda pintasse os olhos pequeninos e encavalitados no nariz, com sombra azul e a farta cabeleira de louro platinado. Punha o volume baixinho para não incomodar os velhotes de olhos postos na televisão muda, à espera de serem chamados.  A menina Natércia não fumava, não bebia, nem ia a discotecas. Não fosse o gosto que tinha por chocolates, poder-se-ia afirmar como  uma mulher sem vícios. Mas tinha de ter sempre perto de si um saquinho de chocolates ditos artesanais, comprados ao domingo no centro comercial, para ir comendo entre consultas e telefonemas, principalmente uns dias antes de lhe vir o período. De preferência de chocolate branco para não se notarem tanto as nódoas na impecável bata branca debruada a amarelo que vestia para trabalhar.Evitava também que tivessem qualquer espécie de álcool por causa do hálito. Mordiscava-os devagarinho enquanto olhava para a televisão muda, cheia de gente feia e emocionada. E depois de o engolir, suspirava e dizia aumentando  o volume dos Abba. Há vidas tão tristes e vazias que nem vale a pena serem ouvidas.




Trufas de chocolate branco e ginjinha:


200g de chocolate branco em barra
30 ml de natas frescas
2 colheres de sopa de ginjinha 
Chocolate preto para decorar

Derreta o chocolate em banho maria juntamente com as natas. Quando tiver um a mistura homogénea junte a ginjinha. Leve ao frigorífico umas horas e tenda bolinhas com a massa. Decore com chocolate preto derretido.


Adaptado de Barefoot Contessa ( Ina Garten)

quarta-feira, setembro 7

15

Às sete da manhã em ponto abria as portas de alumínio pintadas de verde. Desempilhava as sete cadeiras mancas, e deixava-as em volta das mesas já sem cantos. Quando pousava a ultima, chegava o elétrico,vindo de Algés. Dele descia, lentamente e de rosto fechado, a Rosa, que fazia os almoços para os homens da refinaria de açúcar e alguns velhos reformados. Ultimamente, aparecia também um grupo de estudantes da Tapada. Que só comiam alheiras. Iscas, nunca. Bom dia, senhor Manel. Na mão, a assadeira com o pudim de todas as quartas-feiras, tapado por um pano da louça com galos. Olá, Rosa, respondeu-lhe vendo o corpo farto desaparecer na penumbra do restaurante.  Enquanto limpava os  copos onde servia o bagaço, observava-a preparando o almoço. O rosto de boneca, sempre corado e os olhos empapados pela gordura. Os dedos grossos de unhas curtas, cortando rapidamente as batatas. Levou o antebraço à testa para limpar o suor. Boa rapariga, a Rosa, pensou. E saiu de novo para arrefecer a sua solidão de viúvo.  Conseguiu arranjar os caracóis, senhor Manel? Gritou a voz esganiçada lá de dentro. Boa rapariga, a Rosa, pensou de novo. Não,  gritou-lhe. Ficam para amanhã.  Ela chegou-se à porta de faca na mão. A outra pingava a água das batatas. Ficam para amanhã, repetiu ele. Olharam-se no silencio de todos os dias. Guarda-me uma lasca do teu pudim, Rosa. Disse-lhe com voz leitosa e olhos quentes. Ela não o viu. Sorriu envergonhada. Se sobrar, deixo. Hoje é quarta. Limpou a mão gorda ao avental. Os rapazes da Tapada não falham. Um risinho nervoso. Ele sentiu-se velho e tirou os óculos para limpar, enquanto a olhava de soslaio. Boa rapariga, a Rosa. O raio da solidão a arder-lhe de novo. Arranja-me uma cerveja fresca, Rosa. Hoje está um calor que não se pode.




Flan de forno

1 Chávena de açucar
1 Chávena de ovos
1 1/2 Chávena de leite
raspa de limão
Caramelo q.b
Manteiga para untar

Unte uma assadeira de vidro, com o máximo 5cm de altura,  com manteiga. Cubra o fundo com caramelo.  Bata o açúcar com os ovos, junte o leite e a raspa de limão. Leve a forno pré-aquecido a 200ºc, dentro de outra assadeira maior, com água ferver, e deixe cozer por 40 minutos, em banho maria, tapado por papel de alumínio  Deixe arrefecer completamente antes de desenformar.




segunda-feira, setembro 5

Dos sorrisos

Evitava sorrir por causa dos dentes. Encavalitados uns nos outros, cada um do seu tamanho. Sempre que soltava uma das suas gargalhadinhas tímidas colocava a mão à frente da boca, ao mesmo tempo que baixava os olhos, como que a pedir desculpa.  Evitava sorrir por causa dos dentes, mesmo quando via o primo, quem amava desde a infância.  O primo, dono de uma gargalhada grave de quem já tinha visto o mundo, afagava-lhe o rosto corado e chamava-a minha linda. Ela com uma das mãos escondendo os dentes disformes, apontava-lhe o prato azul com o bolo de chocolate que ele tanto gostava. Sobrou esse da encomenda, dizia. Ainda te falta muito, perguntava o primo. Ela corava de novo. Um pouco, respondia. Para que o dinheiro que juntava da venda dos bolos lhe pudesse pagar uns dentes novos. E imaginava-se, sorrindo para um primo enlevado,  com uns dentes certos e brancos. Tão brancos quanto o vestido com que se imaginava. Mas nunca chegou a ter os seus dentes novos. Não se soube se fora por os bolos terem rendido pouco, ou se por o primo ter casado com uma rapariga de sorriso rasgado. Já tinha setenta anos quando, à cabeceira do primo que morria com uma doença de fígado, ele lhe pediu um beijo. Ela ainda levantou a mão para tapar a boca, mas deixou-a no rosto amarelado dele enquanto o beijava. Ele sorriu e sussurrou-lhe ao ouvido. Sabes a chocolate, Marilia.





Corações de chocolate

Ingredientes:
200g de chocolate em tablete
150g de açucar
100g de manteiga sem sal
100g de farinha
4 ovos inteiros

Pré-aqueça o forno a 200º.Derreta o chocolate com a manteiga, em banho maria. Bata os ovos com o açúcar e junte a mistura de chocolate. Adicione a farinha peneirada. Deite em forminhas untadas com manteiga e polvilhadas com farinha e leve ao forno 8-10 minutos. Sirva os bolinhos ainda mornos.

domingo, setembro 4

Comboio das onze

O cheiro das velas e do perfume que a tia usava no dia da missa davam-lhe náuseas. Tantas que antes da comunhão tinha de se sentar com tonturas. E por isso começou a ficar em casa. Primeiro nos dias mais quentes. Depois até nos frios e chuvosos domingos de Inverno. Enquanto esperava que a tia regressasse da missa, sentava-se na cadeira da cozinha, junto à janela que dava para a rua empedrada a ler os livros de culinária. Os únicos, para além da bíblia, que existiam na casa de soalho empenado. No meio deles, descobriu um pequeno caderno de capa de carneira, onde a tia-avó, dona de um cursivo cheio de arabescos, registara todos os seus segredos de doçaria. E começou a servir os doces, que a partir de listas de ingredientes e procedimentos cuidadosamente desenhados a tinta azul, passavam a aromas de canela, laranja e aguardente que abafavam o cheiro a bafio que escorria das paredes da casa.  O padre,  quem todos os domingos a tia convidava para almoçar, deliciava-se especialmente com o arroz doce. Divino, dizia, enquanto limpava os cantos da boca. Talvez um pouco menos de casca de limão, atalhava a tia. Ela, sentada em frente, cerrava os olhos e imaginava-se fugindo de casa, num comboio a cheirar a canela. E foi arroz doce que deixou, junto ao bilhete de duas frases,em cima da mesa da sala. Duas taças, cheias de corações de canela. Uma para a tia, outra para o senhor padre.



Arroz Doce



Ingredientes:

1/2 chávena de arroz carolino
1 chávena de água
1 litro de leite
1 chávena de açúcar
6 gemas
1 pau de canela
1 raspa de limão
1 colher de sopa de manteiga
1 pitada de sal


Ferva o leite com a canela e o limão. Leve a lume muito brando o arroz, a água, a manteiga e o sal até abrir o arroz e a água se tenha evaporado. Depois vá adicionando aos poucos o leite, lentamente, mexendo sempre, até esgotar completamente o leite. Retire do lume e deixe arrefecer um pouco. Misture as gemas com o açúcar e adicione ao arroz, mexendo bem. Leve novamente a lume muito brando, mexendo sempre tendo cuidado para não ferver. Deite em tacinhas ou numa taça grande e decore a gosto com canela.

quinta-feira, setembro 1

Da confeitaria


Da minha janela vejo-as atravessando o cinzento dos dias. Atrás delas, fica o rasto do cheiro das estórias que ninguém conhece. Da memória da canela e anis do que poderia ter sido. Da amêndoa amarga do que quisemos esquecer. Mas ficaram lá, pingando o sabor daquilo que não se conta.  As estórias querem ser contadas. Porque no fim apenas restam as mãos.

Aqui, na minha confeitaria, que também se quer tabacaria de toldo sem cor, viverão estórias. Umas de ler. Outras de comer.