terça-feira, julho 30

Janela

Não há nada mais humano do que a escolha. Mas esta só existe se conhecermos o maior conjunto possível de opções. Sem as conhecer só nos resta imitar comportamentos. Porque é suposto, porque todos os outros fizeram o mesmo, porque quem nos educa diz que é o mais certo, o melhor para nós. Mas será? Seremos assim tão iguais?
“Apresenta o Dream Lab”, pediram-me, e eu, uma mãe que já foi filha de pais que apenas quiseram o melhor, aquele melhor igual a todos os outros, pensei, como se apresenta um projecto, que também é um sitio, que apenas é uma janela? Porque é disso que se trata. Será isso que irá acontecer : uma janela de escolhas. Fora do tradicional, se acreditarmos que a tradição é apenas a repetição do passado, e que crê acima de tudo que só conseguimos, nós, os nossos filhos, ser bons a fazer aquilo que gostamos.
E é apenas isto que aqui trazemos: uma janela onde nos iremos debruçar para percursos de vida que a dada altura inflectiram no comum, no normal, e descobriram um caminho profissional de sucesso, ainda que alternativo. Vamos ver para além da fotografia, construir uma história de banda desenhada, ilustrar emoções, ser por umas horas verdadeiros meninos da rádio. Saber o que move o olhar de um jornalista e as mãos de um designer.
É isto que irá acontecer num laboratório de sonhos, neste fim de Verão, num tubo de ensaio que tem o tamanho que a vontade quiser. Porque, aos quinze somos iguais ao que somos aos cinquenta um: apenas um produto das nossas escolhas.


O Dream Lab é um projecto que mais do que meu, sou eu.  Aos que são agora adolescentes ou pais de adolescentes, digo: espreitem esta janela. O mais certo é encontrarem-se do outro lado da rua.



terça-feira, julho 23

Surdez




Há uma surdez particular que se confunde com falta de humildade. A mim parece-me sempre um sintoma de medo. Que tresanda na pele daqueles que se levam muito a sério.

sexta-feira, julho 19

Amélia



   
        Quando percebeu, tinham passado trinta anos lá fora. Todos sabiam  menos ele. Que continuava a afastar os cortinados do seu primeiro andar com os dedos, sempre que ouvia na rua um Citroen dois cavalos. Era azul, e ela usava uma boina branca. Buzinava e subia todas as segundas feiras quando voltava do conservatório. Quando percebeu que tinham passado trinta anos lá fora decidiu que nunca mais seria segunda feira. E na manhã de terça lembrou-se que nunca tinha chegado a beijá-la.

quarta-feira, julho 17

Dos amores e dos detalhes

Ela costumava contar  histórias de amor enquanto mexia o tacho das compotas. Encostava-se ao fogão  e começava .  Nunca pelo o principio, porque quem se apaixona nunca se lembra bem do antes. Eram histórias de amor bizarras, pois nunca tinham finais felizes. Nem trágicos. Eram histórias povoadas de pessoas normais. Isso não são histórias de amor, diziam-lhe. As verdadeiras têm amores contrariados, declarados em frases com dois ou mais adjectivos e beijos finais debaixo de aguaceiros de verão. As dela debitavam amores possíveis de meia idade, cheios de rugas e flacidez.  Onde os beijos se davam entre o amarelo do tabaco e a lixivia mal disfarçada pelo cheiro a glicerina.  As metáforas e os versos, esses encontrava-os no desalento dos dias ou no repetir das horas. Isso não são verdadeiras histórias de amor, diziam-lhe, são de desencanto. E  ela respondia, mexendo sempre o tacho das compotas, só se desencanta  quem nunca encontrou um amor nos detalhes .




Compota de alperce e cravinho


1kg de alperces
350 g de açúcar
6 cravinhos


Deite os alperces cortados em pedaços e o açúcar numa taça e deixe a macerar de um dia para o outro. Depois leve a lume brando juntamente com os cravinhos até fazer  ponto (tirando um pouco de compota para um prato frio esta deverá manter-se separada depois de passar com uma colh

terça-feira, julho 9

Viagem no tempo



Somos todos os tempos verbais sem qualquer linearidade. Trazemos em nós um presente que se engole num acorde, num cheiro  ou noutra qualquer memória primária sem registo ou idioma . São hiatos no tempo que permanecem em nós, contrariando o compasso binário dos relógios lá fora.

domingo, julho 7

António José

Vejo-a de novo no cemitério. Corta meticulosamente os pés dos cravos brancos para que fiquem todos do mesmo tamanho. São sempre brancos, mesmo quando não são cravos. Guarda a tesoura de costura dentro da mala coçada nos cantos, tira um trapo feito de lençóis velhos e limpa a fotografia a preto e branco logo ao lado do nome em letras douradas. Depois com uma vassoura pequena varre toda a poeira e restos de folhas secas da laje. E fica ali um pouco, de mãos cruzadas no ventre, mexendo os lábios. Uma reza muda. Guarda a vassoura e olha para foto, suspirando sem lágrimas. Levanta o queixo e olha em volta. O coveiro afasta-se empurrando o carrinho de mão, que chia ao longo do carreiro calcetado. Já vai longe. Suspira de novo enquanto afasta as mãos para ancas. Cospe para a foto e sorri triunfante. Com o trapo limpa de novo o vidro da fotografia. Vá. Agora bate-me se conseguires. E solta um risinho nervoso enquanto ajeita uma madeixa que se soltou do carrapito oleoso.
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Deserto do Mundo, 2010

sexta-feira, julho 5

Urgência



Somos um país onde se desvaloriza o tempo. Ficamos pelas três dimensões  suspensos na indecisão. E esperamos, esperamos, sem perceber que para mudar é preciso escolher. A tempo.

quinta-feira, julho 4

Ouro de Viana


Quando noivou, a madrinha que era de Cardielos, deu-lhe um par de arrecadas, uma soga e três moedas de ouro furadas. Que já não te acode a tua mãe, tenho eu de olhar por de ti, merecias melhor com esses olhos azuis de gente de porte, mas o rapaz é trabalhador, pelo menos tem as mãos limpas de terra, que não é vergonha nenhuma, mas a gente sabe que é melhor assim. Guardou-as, às arrecadas, à soga e às três moedas furadas, numa caixa de madeira de cheiro, que o noivo lhe mandou do Brasil, prometendo-lhe que casavam no verão seguinte, que era sempre o seguinte. E por isso quando já os verões se deixaram de contar numa só mão, começou a derreter o ouro na vela, a mesma com que pedia à Senhora que ele voltasse. Com o ouro mando fazer as nossas alianças, escreveu-lhe sem nunca ter resposta. A soga vendeu-a, só este cordão dava- lhe cinco anéis, disse-lhe o ourives, um por cada ano de espera, que depressa se multiplicaram pelas três moedas. Tenho de cuidar de ti, que não te acode a tua mãe, uma arrecada sobre a vela, as cartas que iam sem volta, outra arrecada, os olhos azuis a morrerem na espera, uma moeda, a mãe lá fora a chamá-la quando ainda era pequena, duas, e antes da terceira moeda, a irmã de quem ninguém conhecia a cor dos olhos entrou no quarto, e debruçando-se sobre ela, sussurrou-lhe, cheiras a flores de vestido de boda. Limpou-lhe a lágrima que nunca caía, pegou na última moeda ainda presa na ponta de uma fita, pendurou-lha no pescoço e disse-lhe, não vale o azul dos teus olhos, algo tão sem cor como é a espera.


Hoje a estória é só de ler. Uma estória escrita para exposição Bolota 1/4 adiante que tentou contar com palavras o contributo da  joalheira Liliana Alves.

quarta-feira, julho 3

Palavras na montra da confeitaria.



A porta da Confeitaria está de novo aberta. Com estórias de ler e de comer, que agora nem sempre virão aos pares, pois o cansaço veste-se muitas vezes de presságio de mudança. E agora, esta confeitaria de palavras que se querem de açúcar por vezes só vos trará a imagem da vossa leitura. Porque para mim, a palavra virá sempre primeiro.

Aos leitores resistentes, obrigada. As portas estão abertas. A mudança também.