Maria Eduarda sentia permanentemente que vivia uma vida que não era a sua. Arrendara um apartamento em Campo de Ourique porque não tivera dinheiro para comprar um às Janelas Verdes. Tinha um namorado da linha de Sintra porque achava que ainda não chegara o tempo de sair com os filhos dos sócios do pai. Vestia apenas preto e branco porque ainda não descobrira a cor perfeita para o seu rosto esquálido. Tinha dedos longos e um constante enfado pelo mundo. Enfadava-a o lugar comum da suposta felicidade das pessoas. Talvez por isso gostasse tanto de apanhar, às sextas-feiras, o comboio no Rossio para ir jantar a casa do namorado. Os rostos da carruagem, iguais a tantos outros rostos inexpressivos faziam-na sentir que a sua roupa preta e branca se diluía no monocromatismo da vida dos outros. Descia no Cacém. A família do namorado vivia numa antiga vivenda verde comprimida entre prédios dos anos oitenta. Ela, que fazia sempre por chegar cedo demais, talvez porque o cheiro a mofo e a madeira velha a confortassem, sentava-se ao topo da mesa da cozinha, enquanto a irmã do namorado, rapariga de seios fartos e flácidos e cabelo oleoso, se entregava com o amor que nunca tivera, à confecção de papos de anjo. Esperava com a paciência própria dos felizes pelo ponto de açúcar, enchendo a cozinha de azulejos de flores castanhas, com cheiro a canela e laranja. Quando o irmão chegava do ensaio da companhia de teatro amador, perguntava-lhe sempre se ensaiavam Beckett. O irmão, vestido de preto dizia que não, sorrindo. E ela suspirava enquanto engolia um papo de anjo ainda morno. Pena, gosto muito daquela peça dos dias felizes.
Papos d' anjo
6 gemas + 2 ovos inteiros
300g de açucar
3 dl de água
1 pau de canela
raspa de uma laranja
Pré-aqueça o forno a 180º. Bata as gemas e os ovos inteiros, na batedeira durante 15 minutos, até obter uma massa bem espumosa e leve. Deite a massa em forminhas de queque, untadas com manteiga, e leve ao forno num tabuleiro com água quente, durante 10 minutos.
Deite o açúcar, a água, o pau de canela e a raspa de laranja num tachinho e leve ao lume até fazer ponto de pérola. Coe a calda e reserve. Desenforme os papos de anjo, pique-os com um garfo e deite a calda por cima.
Sirva-os frios.
14 comentários:
O que são dias felizes...
o meu hoje é cinzento e chuvoso, cá dentro e lá fora. Mesmo assim comeria um papo de anjo. Frio, que morno enjoa-me...
:)
Beijo.
Belo texto. Uma vida classe média simples igual a tantas e tantas outras. Que daqui para a frente irá ter o quotidiano bastante dificultado. Sabe-e lá!
Quanto aos papos de anjo... têm muito ovo para mim... esquesitices...
Bom domingo
Nem sei se gosto mais do texto se de papos de anjo :)
Um feliz dia de Domingo
bjs
Olá Cristina, conheci o teu blog através da Ilídia (aliás uma descoberta em simultâneo) e devo dar-te os parabens, porque é fantástico...muito rico.
Passei por cá, espreitei, tornei-me seguidora, mas não tive oportunidade de te deixar uma palavrinha, desculpa.
Papos de anjo, nunca comi, mas comia-os bem enquanto lia a tua hitória digna de um livro de romance! Adorei e voltarei :)
Beijinhos
Mas o que é a felicidade?!
Melhor se alcança, quanto menos a conjecturamos!
A felicidade é simples... nunca um estado de espírito rebuscado!
A credito que a Maria Eduarda pudesse ser feliz!
Andamos sp à procura dos dias felizes... :)
Parece-me que, talvez, o sábado que se avizinha, possa ser um deles! ;)
:*
Um belo texto para introduzir esta deliciosa receita! :-))
Um mundo de quases, melancolico e muito diferente, quando o conto se completa com a receita, virei fã.
Segredos dos subúrbios...
De fazer água na boca...as palavras e a receita.
Andamos â pergunta do que sonhamos
esquecidos que nem tudo acontece
em lumes brandos
Saboroso o seu texto
também gosto da peça, mas prefiro os papos de anjo. :)
beijinho Cristina das palavras doces
Maravilha!Texto e papos...
Parabéns pelo delicioso blogue! ;)
Cristina, que palavras lindas. Mais uma vez, adorei.
oh my God! Papos d'Anjooooooooo!Diviníssimosssssss...!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
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