sábado, maio 11

Deus não gosta de broas


Naquela sala sentavam-se todos ao redor de uma mesa, primeiro três, que o quarto, por só saber servir, teimava sempre em ficar de pé. Naquela sala, que outros também chamavam cozinha, os quatro falavam naquele silêncio de todos os dias, que o que se repete muitas vezes acaba por perder o som. Dizem. Naquela sala, o que servia levantava-se de madrugada para amassar as broas que deixava na igreja todos os primeiros Domingos. Deus não gosta de broas, dizia com indiferença a mais delicada, a que sempre fora diferente por fora, só por fora da pele de porcelana e dos olhos azuis que eram mais negros que o castanho dos outros. Depois, pedia o açúcar, que era amarelo e não em cubos brancos como os que imaginava existir nos palácios. Uma outra, que se chamava Rosa, estendia-lhe o açucareiro, como se soubesses dos gostos de Deus, respondia-lhe. E antes de se embrulhar no xaile verde, dizia, tenho de ir, volto para jantar. Onde vais, perguntava-lhe ele, enquanto vertia o azeite da almotolia. Ao lugar de sempre, respondia-lhe ela, de olhos baixos, que ninguém sabia qual era o lugar de sempre e todos haviam desistido de perguntar, a ela, que nascera com o dom bizarro de ouvir as vozes dos outros antes que fossem faladas. Ele encolhia os ombros, deixo-te a mesa posta. Ela sorria-lhe, a mim chega-me uma broa das tuas, enquanto abria a janela. E quando o lá fora entrava na sala com as cores da manhã, a última, de quem ninguém conhecia a cor dos olhos, dizia, enquanto mergulhava o pão na malga de leite, aquece-me o rosto, este amarelo das primeiras horas do dia, ainda mais do que o cheiro morno do café. Sorriam-lhe todos, ou pensava ela que lhe sorriam, ou talvez apenas lembrassem alguma coisa que ficara lá fora. 


Texto integrante da Exposição: Bolota 1/4 adiante



2 comentários:

Luis Eme disse...

mistérios da vida.

beijinhos Cristina

Tuquinha disse...

Cara Cristina

passo apenas para lhe dizer que é dos blogs que mais gosto de ler...
sim, porque para além das receitas são as suas escritas que eu admiro e gosto muito de ler....
quanto aos doces, simplesmente fabulosos.A copiar muitos por si...
Beijinho e disponha