quarta-feira, setembro 5

Trinta e nove


Guardava um par de sapatos de cetim debaixo da cama. Comprara-os um número abaixo, igual aos anos que tinha, na esperança  que lhe escondesse o tamanho dos pés. Todos os dias dobrava o corpo excessivamente esguio e seco e abria as dobras de papel de seda. Depois guardava-os de novo debaixo da cama, mesmo ao lado da imagem do santo António embrulhado num pano de enxoval.  É uma boda de quantas dúzias? Perguntava antes de tirar os ovos do cesto. A cozinha só tinha uma réstia de luz que entrava por entre a cortina da porta do quintal até morrer nos azulejos de losangos amarelos e castanhos. São para a filha do juiz. Então sete. Sete dúzias, que o sete dá sorte e assim fazem bonito, caem em cascata. Ficam ricos com umas pérolas de açúcar, que são para a filha do juiz. Os sapatos a perderem o brilho cetim debaixo da cama, enquanto o funil de cinco bicos gira em cima da calda. O corpo a secar, por fora e por dentro, no tempo de uma escumadeira. Fá-los finos, que são para a filha do juiz. O funil a girar por dentro do tacho de cobre. Lá fora as mulheres a passar com as flores e os cestos de arroz. Mais uma meada de fios. Tudo o que queria, o que podia querer, era uma boda assim. Mas o corpo crescera para além do atarracado dos homens que não acabavam a escola. Mais uma meada. Sete dúzias são oitenta e quatro. O  santo António que mofava debaixo da cama havia de lhe trazer um homem que lhe aconchegasse o corpo seco. Deita mais água na calda, que seca. E o corpo também. A última meada. Guardava também o colar de pérolas falsas que a mãe usara no casamento. Os dedos vazios de aliança a salpicarem os fios com as pérolas de açúcar. Que lindos ficaram. E o corpo secou-se mais um pouco. Talvez a próxima, talvez a próxima, meu rico santo António, seja a minha.


Fios de ovos




12 gemas + 2 ovos inteiros
500g de açúcar
250 ml de água

Desfaça as gemas com os ovos, e passe-as duas vezes por um passador de rede. Leve o açúcar com água num tacho grande ao lume até fazer ponto de pérola fraco. Encha um passador de bicos e vá deitando a mistura de gemas em fios na calda, fazendo movimentos rápidos e circulares. Retire as meadas com uma escumadeira. Repita o processo até esgotar as gemas. Vá adicionando água à calda sempre que vir que esta fica muito espessa. No fim separe os fios com um garfo e regue com a calda restante.

Adaptado de :  Maria de Lurdes Modesto, Cozinha Tradicional Portuguesa

8 comentários:

mfc disse...

A história linda e triste da florista que queria ser bailarina!
Tu consegues condensar a trama de uma forma brilhante.
Parabéns e um beijinho.

CNS disse...

Os sapatos são de noiva, mfc ;)

Anónimo disse...

Adoro fios de ovos ( sem estarem secos - deita-lhe mais água na calda... ). Texto muito apropriado. Parabéns Beijinho João Rato

São Ribeiro disse...

LINDO TEXTO,GOSTEI.
SOU GULOSA POR FIOS DE OVOS...ADORO.
BJS

Leonor disse...

Adoro a fotografia :)

Blondewithaphd disse...

E eu a pensar que fios de ovos eram uma dor de cabeça de complicados e, pasme-se, é "só" escorrer ovos para calda de açúcar!
(também gostei do texto)

J. disse...

oarabéns atrasados! tinha ficado vidrada na imagem e deixado a receita como "item nao lido" e so agora reparei nos 39 :)


1 beijinho

Ameixinha disse...

Ai os fios por entre os dedos e a boca aberta cheia de desejos :)