As memórias são atalhos, pensei enquanto sentia o sabor de café com leite. Lembrei-me do cheiro que me tinha feito escrever esta história simples,em tempos. Lembrei-me de um sorriso descarnado que conheci em tempos e de uma casa de costura a transbordar de afectos. Partilho hoje esta história convosco.
Era uma casa velha. Com muros de granito
cobertos de hera e tempo. O mesmo que se esboroava na paredes cor de rosa da
casa. Onde viviam duas mulheres. Uma velha e outra sem idade, que se pensava
ser nova. Mas nunca ninguém soubera a sua data de nascimento. Nem ela. Lúcia, era
o nome dessa mulher sem idade, com rosto de criança. Sorriso descarnado, e
pregas cobrindo os olhos pequenos. Quando se ria, cobria os dentes amarelados
com as costas da mão, enquanto o corpo robusto se dobrava sobre o ventre. Lúcia,
assim lhe chamara a velha. Desde o dia em que a trouxera do casebre onde vivia
com os irmãos. A quem ela cantava para adormecer. Uma canção sem palavras. Sem
princípio, nem fim. Sussurrada de boca fechada. Era a única fêmea de oito. Uma
fêmea analfabeta, a quem o pai tapava a boca nas noites em que voltava a
cheirar a vinho da taberna. Lúcia. Quantos anos tens, Lúcia? Ela encolhia os
ombros e deitava os olhos pequenos e mortiços num tempo que já não vinha. Os
irmãos dormindo ao seu lado. O corpo quente do pai, tapando-lhe a boca. E ela
sussurrando a canção na esperança de adormecer. Não, não sabia quantos anos
tinha. Nem quantos anos ficou naquela casa cuidando da velha. Que tinha um sorriso
meigo. E não andava, presa a uma cadeira
de rodas que Lúcia empurrava, pelo carreiro de cimento do quintal. Pelo chão de
tábua corrida, que chiava à sua passagem. Travava a cadeira e ajoelhava-se
ao seu lado. A vê-la bordar com os dedos deformados e vermelhos. Ou a tentar
ler a letra miúda dos livros que lhe faziam arder os olhos. Um dia a velha
deixou de conseguir ler as letras miúdas. E quis que Lúcia aprendesse a ler.
Para me leres os livros em voz alta. Disse-lhe. Mas Lúcia não quis. As letras
eram vazias. Preferia ver as fotografias a preto e branco do tempo em que a
velha ainda andava e tinha o cabelo preto. Eram quadrados de papel onde o tempo
para além de ser lustroso não corria para parte alguma. Estas também contam
estórias. Dizia-lhe. E não fazem arder os olhos. E ajoelhava-se no chão da sala
de costura. A que tinha uma janela pequena para estrada. E escutava a velha,
que lhe contava as estórias das caras a preto e branco. E por isso Lúcia
gostava de ver fotografias. E dos bolos redondos que a velha tendia nos
joelhos, junto à chaminé de pedra da cozinha. Que comia às escondidas
enquanto estendia os lençóis. Ficava ali, agachada por detrás dos lençóis e do
cheiro a sabão e canela, comendo bolos. Deixando o tempo, que não sabia contar,
correr por entre as migalhas de bolos que deixava espalhadas no chão de
cimento.
Um dia a velha não se levantou da cama. E
Lúcia nunca mais empurrou a cadeira de rodas. A velha só saía do quarto, quando
a Lúcia a transportava ao colo até à banheira. Onde lhe lavava o corpo flácido
e engelhado. Lentamente, com uma luva turca que já perdera a cor. Depois
vestia-lhe uma camisa de noite lavada e levava-a de novo ao colo até à cama.
Ajoelhava-se no chão e cantava-lhe a mesma canção de embalar que cantava aos
irmãos para os adormecer. Sem letra. Sem princípio, nem fim. A velha sorria. E
dizia-lhe coisas bonitas e meigas que faziam Lúcia sorrir também. Até que um
dia a velha sentiu-se pior. E deixou de falar. Lúcia continuou a levá-la ao
colo para o banho. E a cantar-lhe a mesma canção. A velha tentava sorrir.
Mas a boca deformada já não mexia. Só os olhos sorriam. E abria a boca para lhe
dizer as coisas bonitas de sempre. Mas não saía som. Lúcia encolhia os ombros.
Não fazia mal. Ela sabia. Ela sabia o que voz da velha não dizia. Colocava-lhe
a máscara para a velha poder respirar. Aconchegava-lhe a roupa da cama,
ajoelhava-se no chão e cantava a canção de boca fechada. O tempo que
Lúcia nunca soube contar, foi passando. E olhar da velha esmorecendo. O médico
e os filhos diziam que se tinha esperar. Que o fim estaria a chegar. Mas
o fim, que se contava num tempo diferente das dores da velha, não chegava. As
dores que lhe causavam o choro mudo sempre que Lúcia lhe rolava o corpo na capa.
As dores que apagavam os olhos da velha dentro daquele corpo que não queria
morrer. Um dia quando a levava ao colo para lhe dar banho, a velha apertou-lhe
o braço e chorou. De uma dor ainda maior que a do corpo. A dor do cansaço. Quase
que lhe saiu um som rouco da boca muda. Ou assim pareceu a Lúcia , que lhe deu
banho. Lentamente. Com a luva de turco sem cor. Que lhe vestiu a camisa de
noite lavada. Que lhe aconchegou a roupa da cama. E se ajoelhou ao lado dela.
Mas dessa vez em silêncio, enquanto via as lágrimas correndo pelo rosto da
velha. Enquanto Lúcia olhava para a mascara presa à botija. A velha fez um
gesto com cabeça. Não. Parecera a Lúcia. Que a velha dissera não. E ficou
a ali imóvel, enquanto o peito ofegante da velha acalmava por debaixo da roupa
da cama. Até que o corpo definhado parou. Lúcia levantou-se. Fechou-lhe os
olhos vidrados. Correu as persianas do quarto e sentou-se na berma da cama a
chorar.
Naquela casa viviam duas mulheres. Uma velha. E outra sem idade, mas com
rosto de criança. Que ficou sozinha a comer bolos por detrás dos lençóis no
estendal, no dia em que a vieram buscar o caixão com o corpo da velha.
in Gineceu, 2009
Brigadeiros Cappuccino
1 lata de leite condensado
1 colher de sopa de manteiga
1 saqueta de café soluvel ( 2-3g)
Cacau em pó
Leve o leite condensado a manteiga e o café num tachinho a lume brando. Deixe engrossar até fazer estrada ( ao passar com uma colher a massa afasta-se e volta a juntar-se lentamente). Deite o preparado numa tijela untada com óleo e leve ao frio durante uma horas até ficar bem firme. Depois tenda bolinhas e envolva-as no cacau em pó.
4 comentários:
E lá se vai a linha!:)
Que lindo texto...
que bom, a história e o aroma a café.
beijinhos Cristina
esta história eu tenho!
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