sexta-feira, outubro 19

Lúcia ou uma estória simples.


As memórias são atalhos, pensei enquanto sentia o sabor de café com leite. Lembrei-me do cheiro que me tinha feito escrever esta história simples,em tempos. Lembrei-me de um sorriso descarnado que conheci em tempos e de uma casa de costura a transbordar de afectos. Partilho hoje esta história convosco.





Era uma casa velha. Com muros de granito cobertos de hera e tempo. O mesmo que se esboroava na paredes cor de rosa da casa. Onde viviam duas mulheres. Uma velha e outra sem idade, que se pensava ser nova. Mas nunca ninguém soubera a sua data de nascimento. Nem ela. Lúcia, era o nome dessa mulher sem idade, com rosto de criança. Sorriso descarnado, e pregas cobrindo os olhos pequenos. Quando se ria, cobria os dentes amarelados com as costas da mão, enquanto o corpo robusto se dobrava sobre o ventre. Lúcia, assim lhe chamara a velha. Desde o dia em que a trouxera do casebre onde vivia com os irmãos. A quem ela cantava para adormecer. Uma canção sem palavras. Sem princípio, nem fim. Sussurrada de boca fechada. Era a única fêmea de oito. Uma fêmea analfabeta, a quem o pai tapava a boca nas noites em que voltava a cheirar a vinho da taberna. Lúcia. Quantos anos tens, Lúcia? Ela encolhia os ombros e deitava os olhos pequenos e mortiços num tempo que já não vinha. Os irmãos dormindo ao seu lado. O corpo quente do pai, tapando-lhe a boca. E ela sussurrando a canção na esperança de adormecer. Não, não sabia quantos anos tinha. Nem quantos anos ficou naquela casa cuidando da velha. Que tinha um sorriso meigo. E não andava,  presa a uma cadeira de rodas que Lúcia empurrava, pelo carreiro de cimento do quintal. Pelo chão de tábua corrida, que chiava à sua passagem. Travava a cadeira e ajoelhava-se ao seu lado. A vê-la bordar com os dedos deformados e vermelhos. Ou a tentar ler a letra miúda dos livros que lhe faziam arder os olhos. Um dia a velha deixou de conseguir ler as letras miúdas. E quis que Lúcia aprendesse a ler. Para me leres os livros em voz alta. Disse-lhe. Mas Lúcia não quis. As letras eram vazias. Preferia ver as fotografias a preto e branco do tempo em que a velha ainda andava e tinha o cabelo preto. Eram quadrados de papel onde o tempo para além de ser lustroso não corria para parte alguma. Estas também contam estórias. Dizia-lhe. E não fazem arder os olhos. E ajoelhava-se no chão da sala de costura. A que tinha uma janela pequena para estrada. E escutava a velha, que lhe contava as estórias das caras a preto e branco. E por isso Lúcia gostava de ver fotografias. E dos bolos redondos que a velha tendia nos joelhos,  junto à chaminé de pedra da cozinha. Que comia às escondidas enquanto estendia os lençóis. Ficava ali, agachada por detrás dos lençóis e do cheiro a sabão e canela, comendo bolos. Deixando o tempo, que não sabia contar, correr por entre as migalhas de bolos que deixava espalhadas no chão de cimento. 
Um dia a velha não se levantou da cama. E Lúcia nunca mais empurrou a cadeira de rodas. A velha só saía do quarto, quando a Lúcia a transportava ao colo até à banheira. Onde lhe lavava o corpo flácido e engelhado. Lentamente, com uma luva turca que já perdera a cor. Depois vestia-lhe uma camisa de noite lavada e levava-a de novo ao colo até à cama. Ajoelhava-se no chão e cantava-lhe a mesma canção de embalar que cantava aos irmãos para os adormecer. Sem letra. Sem princípio, nem fim. A velha sorria. E dizia-lhe coisas bonitas e meigas que faziam Lúcia sorrir também. Até que um dia a velha sentiu-se pior. E deixou de falar. Lúcia continuou a levá-la ao colo para o banho. E a cantar-lhe a mesma canção. A velha tentava sorrir. Mas a boca deformada já não mexia. Só os olhos sorriam. E abria a boca para lhe dizer as coisas bonitas de sempre. Mas não saía som. Lúcia encolhia os ombros. Não fazia mal. Ela sabia. Ela sabia o que voz da velha não dizia. Colocava-lhe a máscara para a velha poder respirar. Aconchegava-lhe a roupa da cama, ajoelhava-se no chão e cantava a canção de boca fechada.  O tempo que Lúcia nunca soube contar, foi passando. E olhar da velha esmorecendo. O médico e os filhos diziam que se tinha esperar. Que o fim  estaria a chegar. Mas o fim, que se contava num tempo diferente das dores da velha, não chegava. As dores que lhe causavam o choro mudo sempre que Lúcia lhe rolava o corpo na capa. As dores que apagavam os olhos da velha dentro daquele corpo que não queria morrer. Um dia quando a levava ao colo para lhe dar banho, a velha apertou-lhe o braço e chorou. De uma dor ainda maior que a do corpo. A dor do cansaço. Quase que lhe saiu um som rouco da boca muda. Ou assim pareceu a Lúcia , que lhe deu banho. Lentamente. Com a luva de turco sem cor. Que lhe vestiu a camisa de noite lavada. Que lhe aconchegou a roupa da cama. E se ajoelhou ao lado dela. Mas dessa vez em silêncio, enquanto via as lágrimas correndo pelo rosto da velha. Enquanto Lúcia olhava para a mascara presa à botija. A velha fez um gesto com cabeça. Não. Parecera a Lúcia. Que a velha dissera não. E ficou a ali imóvel, enquanto o peito ofegante da velha acalmava por debaixo da roupa da cama. Até que o corpo definhado parou. Lúcia levantou-se. Fechou-lhe os olhos vidrados. Correu as persianas do quarto e sentou-se na berma da cama a chorar. 
Naquela casa viviam duas mulheres. Uma velha. E outra sem idade, mas com rosto de criança. Que ficou sozinha a comer bolos por detrás dos lençóis no estendal, no dia em que a vieram buscar o caixão com o corpo da velha.


in Gineceu, 2009


Brigadeiros Cappuccino




1 lata de leite condensado
1 colher de sopa de manteiga
1 saqueta de café soluvel ( 2-3g)
Cacau em pó


Leve o leite condensado  a manteiga e o café num tachinho a lume brando. Deixe engrossar até fazer estrada ( ao passar com uma colher a massa afasta-se e volta a juntar-se lentamente). Deite o preparado numa tijela untada com óleo e leve ao frio durante uma horas até ficar bem firme. Depois tenda bolinhas e envolva-as no cacau em pó.




4 comentários:

Blondewithaphd disse...

E lá se vai a linha!:)

CF disse...

Que lindo texto...

Luis Eme disse...

que bom, a história e o aroma a café.

beijinhos Cristina

Claudia Sousa Dias disse...

esta história eu tenho!